DEMÊNCIAS FRONTOTEMPORAIS

ENTREVISTA DO DR DRÁUZIO VARELLA COM O PSIQUIATRA SÉRGIO HOTOTIAN

A demência frontotemporal é uma doença que abrange de 5% a 10% dos casos de síndromes demenciais. Saiba como reconhecer os sintomas.

Em medicina, o termo demência tem significado bem diferente daquele entendido pelos leigos, que confundem demência com loucura. Sob o ponto de vista médico, as demências compreendem um número grande de enfermidades incuráveis que apresentam certas características comuns entre si, mas com peculiaridades distintas umas das outras. Provas disso são a doença de Alzheimer, a demência vascular e dos corpúsculos de Lewy, as doenças de Pick, de Huntigton e de Creutzfeldt-Jakob e a demência frontotemporal (DFT), quase todas com etiologia e tratamento específicos.

 

A demência frontotemporal, em particular, é uma doença de início insidioso e progressão lenta que, em geral, acomete pessoas acima de 50 anos, mais as mulheres do que os homens, e cujos sintomas, muitas vezes, não são valorizados pela família. O primeiro sinal, geralmente, é uma crise de depressão tardia, seguida de distúrbios comportamentais, tais como desinibição, negligência com os cuidados pessoais e de higiene, desatenção, agressividade, além de distúrbios cognitivos (comprometimento da memória), rigidez mental, hiper oralidade, labilidade emocional e alterações da fala.

 

Como o número de idosos aumenta na maioria dos países, inclusive no Brasil, a demência frontotemporal está se tornando mais frequente. O diagnóstico é predominantemente clínico e leva em conta as alterações de comportamento e personalidade do idoso.

 

Drauzio – Quais são as principais características da demência frontotemporal?

 

Sérgio Hototian – A demência frontotemporal é uma doença que abrange de 5% a 10% dos casos de síndromes demenciais. A prevalência parece ser maior no sexo feminino.

Assim como a doença de Alzheimer e as demências vasculares, a DFT é uma enfermidade frequente e importante, mas seus sintomas podem passar despercebidos.

 

O sinal marcante da doença é a mudança de comportamento no que se refere à resolução de problemas do dia a dia com tendência à impulsividade. Começa a chamar a atenção da família a grande dificuldade que a pessoa mais velha demonstra diante de problemas já conhecidos e as formas incoerentes e bizarras de solução que encontra, muitas vezes, na base da força. Outra alteração importante é a mudança da tolerância à angústia e a problemas comuns,
causando isolamento social nos casos mais graves.
Drauzio – Em geral, a DFT atinge pessoas em que faixa de idade?

 

Sergio Hototian – Geralmente, inicia-se a partir dos 50 anos, e o tempo de evolução da doença pode oscilar de dois a vinte anos, contados a partir da manifestação de mudança da personalidade.
Drauzio – Você disse que a demência frontotemporal é caracterizada por mudanças de comportamento e por alterações na forma de resolver os problemas do cotidiano. Disse também que as pessoas com a doença tendem a tomar atitudes impulsivas. Você poderia dar um exemplo prático do que acontece com elas?

 

Sergio Hototian – Por exemplo: pessoas que dirigem há muitos anos, começam a bater o carro com frequência, ou não conseguem estacionar o carro numa vaga e se atrapalham até para sair da garage de casa. Ficam desatentos e se descuidam de observar os sinais de trânsito e os semáforos, que são alterações atencionais.

 

As alterações comportamentais podem ser observadas com mudança de hábitos norteados por padrões morais diferentes: mudança de religião, surgimento de tabagismo ou alcoolismo tardios.

 

A questão principal é a dificuldade para a realização ou execução de tarefas, chamadas de disfunção executiva.

Drauzio – Quais são as mudanças comportamentais que caracterizam o comprometimento frontal?

 

Sergio Hototian – Os sinais clássicos de frontalização são: desinibição, hiper-oralidade e impulsividade, que podem caracterizar-se a partir da mudança de personalidade observada pelos familiares. Por exemplo: mudança do foco da atenção ou interesses, irritabilidade e perda da inibição no controle social. Declínio  da crítica sobre determinadas regras, além de oscilações de humor.

As reações de alegria ou tristeza passam a ser notadamente desproporcionais ao estímulo. Por exemplo, a pessoa fica extremamente triste ao assistir a um filme ou ao tomar conhecimento de uma notícia qualquer que ninguém ao redor atribui o mesmo peso.

 

Nos casos mais graves, a síndrome frontotemporal promove perturbações que afetam a convivência ética do paciente no funcionamento social. Nos casos moderados, merece destaque o desleixo e a negligência com os cuidados pessoais e a perda de contato com os limites estabelecidos: falta de higiene, descuido da aparência, desleixo ou despreocupação ambiental.

 

Comportamentos bizarros podem ocorrer nos caso mais graves como erotização e desinibição sexual, uso de palavras de baixo calão e perda do pudor.

Drauzio – Imagine uma pessoa de 60, 65 anos que entra num quadro depressivo – depressão é uma doença grave – faz tratamento e evolui com um comportamento um pouco estranho, age de forma inusitada, está mais irritada, distraída e desatenta. Esses são sintomas muito vagos. Como a família pode perceber as alterações que indicam a necessidade de encaminhar essa pessoa para assistência psiquiátrica?

 

Sergio Hototian – Podem ser sintomas muito difíceis de se constatar e considerados até  normais sem o crivo de um exame detalhado dos fatos comparados ao discurso do paciente; não é raro as pessoas próximas deixarem de lhes atribuir a devida importância.

 

Idosos que vivem sozinhos são frequentemente vistos como autossuficientes mesmo apresentando os sintomas acima descritos. Assim sendo, somente a presença de familiares ou amigos próximos pode ser decisiva na observância dos sintomas depressivos. Exemplo clássico disso são os idosos que apresentam a chamada síndrome de Diógenes, muito comum na síndrome de espectro frontotemporal, que leva o indivíduo ao isolamento, ao acumulismo, especialmente em função de um comportamento esquivo e irritável ao contato social e à negligência da higiene, em especial os cuidados pessoais e com animais.

 

Pode haver excesso de animais com risco à saúde pública, pois há uma total negligência tanto na percepção da capacidade de tê-los, como na execução da tarefa de cuidar deles. Casos de idosas acumuladoras de animais são frequentes e causam grande comoção pelos maus tratos em decorrência da perda da percepção da inadequação.

 

A esta inadequação e à falta de autopercepção ou insight chamamos de anosognosia, que nada mais é do que a própria demência.
Em resumo, o comportamento negligente, impulsivo, o humor irritável associados à incapacidade de realização das tarefas por negligência compõem o diagnóstico de depressão nesses sujeitos.
Drauzio – Como é feito o diagnóstico das demências frontotemporais?

 

Sergio Hototian – A descrição clássica desse subtipo de demência foi feita por Arnold Pick, em 1892, tendo como referência indivíduos que desenvolveram uma série de alterações cognitivas e comportamentais declinantes por disfunção executiva grave e fatal associadas à degeneração do lobo frontal nos achados de necropsia.

 

Recentemente psiquiatras, neurologistas e cientistas vem indicando exames de neuroimagem funcional que mostram, com alta eficácia e acurácia, padrões de baixa captação de marcadores nos lobos frontais e temporais nas DFTs.

 

O diagnóstico clínico é realizado de acordo com os critérios de Lund e Manchester, estabelecidos em 1994, acrescidos dos exames de neuroimagem funcional. São demências que se apresentam através de declínio progressivo da atenção especialmente afetando a tomada de decisão com perda da independência, do ponto de vista cognitivo.

 

O diagnóstico inicia-se pela história clínica de declínio com os componentes acima descrito acrescido do diagnóstico neuropsicológico de disfunção executiva, impulsividade e desatenção.

 

Técnicas de neuroimagem funcional vêm sendo aprimoradas. É o caso do Pet Scan cerebral para o exame do fluxo frontotemporal quanto a captação de biomarcadores específicos, tentando-se chegar ao diagnóstico quase que concomitantemente aos achados comportamentais e neuropsicológicos.

 

Drauzio – Como se manifesta essa dificuldade para falar? A voz fica empastada, o vocabulário empobrece?

 

Sergio Hototian – Geralmente, aparecem distúrbios como a disartria, ou seja, a dificuldade na produção dos fonemas, principalmente na articulação das vogais, e a afasia. Os pacientes acabam perdendo a capacidade de usar as palavras para expressar-se, não porque a memória tenha falhado, mas por causa da disfunção do lobo frontal. Com a evolução da doença, eles podem deixar de falar definitivamente.

 

Vou dar um exemplo. No decorrer de um ano, uma paciente deu mostras de ter adotado um comportamento estranho e apresentou um distúrbio da fala, sintomas que passaram despercebidos. Quando os familiares notaram que ela começou a coletar e a guardar objetos inadequados, atribuíram o fato a uma mania própria da idade. No entanto, no final desse período, ela caiu em mutismo absoluto. Cinco anos após o início dos primeiros sintomas, passou a ficar
acamada e desenvolveu um quadro tardio de distúrbio da memória. Ao contrário do que acontece com a doença de Alzheimer.

 

Drauzio – Isso quer dizer que, na doença de Alzheimer, os testes neuropsicológicos mostram as alterações cognitivas antes de aparecerem as manifestações clínicas, o que não acontece com as demências frontotemporais.

 

Sergio Hototian – Exatamente. Na demência frontotemporal, o diagnóstico é basicamente clínico, porque os testes neuropsicológicos, em geral, não apresentam alterações além da perda de atenção, comum nos quadros de depressão.

 

Outra característica da doença é a irritabilidade, que é tolerada ou confundida pela família – “Ah, ela é assim mesmo” – no início. Quando associada, porém, ao uso de álcool ou de outras substâncias de efeito desinibidor, essa irritabilidade pode levar à perda dos parâmetros sociais e gerar atitudes agressivas, aumentando o risco de o paciente envolver-se em questões de ordem médico-legal.

 

Isso acontece porque é no lobo frontal que se processa a inibição responsável por estabelecer os limites sociais para os atos do dia a dia. Uma pessoa desinibida, com tendência à oralidade (come mais, fuma mais, bebe mais), está mais sujeita a envolver-se em brigas de trânsito, brigas com vizinhos e a desentender-se por assuntos que normalmente não a afetariam.

 

Portadores da síndrome frontotemporal tendem a ficar agitados durante as internações hospitalares, e muito agressivos quando alguém lhes impõe limites. Ficam bravos, muito mais do que seria justificável, quando lhes falam o que não querem ouvir e costumam jogar a culpa dos próprios erros nas costas dos outros. Podem chegar ao extremo de agredir o cuidador e as pessoas próximas, até fisicamente. Além disso, alguns portadores de síndrome frontotemporal
grave podem desenvolver sociopatias importantes e demonstram certo sadismo diante do sofrimento alheio.

 

Drauzio – O que acontece no cérebro dessas pessoas que as leva a apresentar quadros de irritabilidade, de déficit de atenção etc.?

 

Sergio Hototian – Ocorre uma degeneração desproporcional ao envelhecimento. Nós perdemos neurônios desde que nascemos. Isso não quer dizer que o indivíduo idoso esteja condenado a uma vida intelectualmente pobre e comprometida. No entanto, está provado que a atrofia do lobo frontal (a alteração começa sempre por esse lobo e só depois atinge o lobo temporal) provoca uma reação exagerada aos estímulos, em especial diante dos problemas.

 

Drauzio – Não há nenhuma alteração no cérebro que seja característica dessas doenças…

 

Sergio Hototian – Existe para a doença de Pick, que são as células com os corpúsculos de Pick, mas as síndromes frontotemporais ultrapassam os pré-requisitos descritos por Arnold Pick. Por isso, é importante levar em consideração o quadro clínico, o comportamento do paciente, a presença de depressão tardia, depois dos 50 anos. Embora os exames de imagem funcionais, principalmente o SPECT e o PETSCAN possam revelar um hipofluxo, ou seja, uma queda na concentração de oxigênio na região frontal do cérebro, o diagnóstico é sempre essencialmente clínico.
Drauzio – Você mencionou pessoas que começam a coletar e a guardar objetos inadequados. Recentemente, em São Paulo, houve o caso de uma senhora que acumulou não sei quantas toneladas de lixo em casa. Ela se enquadrava nos quadros de demência frontotemporal?

 

Sergio Hototian – Não dá para afirmar, mas é possível que sim. O impressionante é que ela fez isso ao longo de anos. No início, ninguém desconfiava do que estava acontecendo e foi difícil demovê-la, pois achava que agir daquela forma era perfeitamente correto e normal.

Na verdade, essas pessoas podem ter tamanha força de decisão que chegam a confundir quem com elas interage. Aliás, as síndromes frontais podem deixar as pessoas cada vez mais firmes em suas atitudes e crenças, tornando-as progressivamente mais isoladas, avessas ao diálogo e mais irritáveis.

 

Drauzio – Durante muito tempo, acreditou-se que alguns idosos tinham esse perfil, ficavam rabugentos…

 

Sergio Hototian – Não é de todo verdade, pois alguns ficam apáticos. Essa alteração é conhecida em países com grande número de idosos, como França, Suécia e Inglaterra, cuja população vem envelhecendo há 100 ou 200 anos. Ou seja, são países com muitas pessoas idosas e poucos jovens e crianças (no Brasil, o número de idosos vem aumentando há apenas 20 anos).

 

A experiência desses países foi confirmada pela pesquisa de um grupo inglês, que chegou à conclusão de que pacientes idosos, que vivem sozinhos, precisam ser visitados de vez em quando, uma vez que cinco pessoas acima de 65 anos em cada 10 mil correm o risco de desenvolver a síndrome.

 

Portanto, outra característica da doença no lobo frontal é o paciente adquirir uma força maior de decisão, mas perder a crítica, o “insight”. Esse sintoma não aparece na doença de Alzheimer. Ao contrário, pessoas com Alzheimer ficam mais frágeis. Se você lhes pergunta alguma coisa, elas se voltam para o acompanhante em busca de confirmação, porque não têm certeza de suas respostas.

 

Já os portadores de demência frontotemporal são cheios de certeza. Vi casos de pessoas não deixarem ninguém entrar no quarto, que era limpo só uma vez por ano, na época do Natal. Uma vez, presenciei a retirada de um paciente de um quarto de hotel, onde não permitia que ninguém entrasse. Quando finalmente conseguiram abrir ao aposento, encontraram uma mala com aproximadamente 200 baratas. Ele guardava de tudo ali: restos de comida, objetos inúteis, lixo.

 

A intensidade da negligência com a higiene e com os cuidados pessoais pode variar de leve a grave. Leve, quando fica limitada à rotina diária da própria pessoa e não perturba quem está por perto; moderada, quando a mudança de comportamento passa a restringir as atividades do dia a dia, e grave, quando as alterações caracterizam um quadro de demência, termo usado no Império Romano há mais de 2 mil anos e que nos remete à ideia de loucura irreversível.

 

Drauzio – Em que consiste o tratamento das demências frontotemporais?

 

Sergio Hototian – O tratamento é sintomático. Se o paciente apresentar um quadro depressivo, são indicados medicamentos antidepressivos por tempo limitado e observa-se a reação.

 

Remédios inibidores da acetilcolinesterase prescritos para doença de Alzheimer mostraram não ser eficazes para melhorar o comportamento dos portadores da síndrome e, embora o uso da memantina tenha sido testado para melhorar a apatia, não foram encontrados resultados
convincentes para sua indicação.

 

Os neurolépticos ajudam a inibir a agressividade e a impulsividade, mas tudo deve ser feito de maneira cuidadosa, muito delicada, com bom-senso e paciência, porque esses pacientes respondem mal a doses altas de medicação e tendem a abandonar o tratamento.

 

Drauzio – A doença evolui progressivamente, ou pode estabilizar?

 

Sergio Hototian – Trata-se de doença progressiva e grave. No início, pode haver estabilização com técnicas ambientais e comportamentais associadas ao tratamento farmacológico. Porém, além de progressiva, a doença é também incapacitante.

 

Maria Helena Varella Bruna é redatora e revisora, trabalha desde o início do Site Drauzio Varella, ainda nos anos 1990. Escreve sobre doenças e sintomas, além de atualizar os conteúdos do Portal conforme as constantes novidades do universo de ciência e saúde.

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